Rafael Cal
vende-se uma geladeira azul
Núcleo de
Dramaturgia/2014
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ANNA
Você quase nunca ia lá.
JOÃO
Nem o Bernardo.
Anna pega outros documentos e entrega a João e Bernardo. Os dois observam aten-
tamente os papéis e balançam a cabeça.
ANNA
Aqui os papéis das doações que ela fez em vida. Não precisava da gente pra nada.
BERNARDO
Como ela vai deixar a gente assim?
ANNA
Assim como?
JOÃO
Assim, sem nada, ué.
ANNA
Não é bem assim.
BERNARDO
Mas você disse que...
JOÃO
Ela não deixou tudo pro asilo?
BERNARDO
Casa de repouso.
ANNA
Deixou. Mas o diretor de lá me entregou uma carta essa semana e foi por isso que
chamei vocês.
Anna pega outro papel na pasta. É uma carta escrita pela avó. Os três se aproximam
da folha. Cada um deles lê um trecho.
ANNA
Vocês devem estar se perguntando por que deixei todos os meus bens para a Casa
de Repouso Fênix, lugar em que passei meus últimos anos. A resposta é bem sim-
ples, tão simples que não acho que preciso dizer a vocês.
BERNARDO
Confio no bom senso dos três e que serão capazes de compreender o que pensava
quando tomei essa decisão. Criei vocês pra isso. Tentei, após a morte dos seus pais,
criá-los da melhor maneira possível. Não sei se consegui, mas fiz meu melhor.
JOÃO
Queria deixar claro também que não os deixei sem nada. Tampouco os evitei uma
herança. O fato é que os bens já não eram meus, já havia repassado tudo à casa
de repouso. E, João, por favor, não chame de asilo, soa pejorativo demais. Como
disse, já tinha me desfeito de tudo em vida, de modo que não houvesse briga após
a minha morte.
BERNARDO
Vocês cresceram e já não os via como gostaria. Nada disso, Bernardo, não se trata,
por favor, de nenhuma punição por nada. Envelhecer tem um ônus triste que é ver
as pessoas morrendo ou indo embora pras suas próprias vidas. Já esperava por isso
de vocês. Entendo, a vida é assim mesmo.