Rafael Cal
vende-se uma geladeira azul
Núcleo de
Dramaturgia/2014
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Eu não sei se eu quero!
ANNA
Você não quer dinheiro? E as suas dívidas? E as drogas que você tem que comprar
por aí?
JOÃO
Não se trata do dinheiro.
BERNARDO
É sempre dinheiro. É o quê? Tá querendo mais? É isso? Você acha que merece mais
porque era o predileto daquela velha escrota?
JOÃO
Por que você odeia tanto a vovó?
BERNARDO
Predileto daquela velha escrota! Sabia que isso ia acontecer.
ANNA
Não tem nada disso de predileto, Bernardo. Para com isso.
BERNARDO
É claro que tinha. Ela me odiava. Era tudo pra esse moleque mimado. Tudo. Docinho
de leite. Comidinha. Espadinha. Festinha. Deu no quê? Nesse cretino, desocupado,
maconheiro e mimado. Você devia ter ido embora naquele dia.
JOÃO
Você bem que queria, né? Você acha que eu não lembro de você me pilhando pra
ir embora?
ANNA
Que história é essa?
BERNARDO
Você devia ter ido. Devia ter sumido. Ou eu devia ter vendido você. Melhor do que
ter que vender essa merda dessa geladeira agora.
ANNA
Olha, vamos ser práticos, tá? João, eu mandei uma mensagem confirmando. Já tá
feito. A geladeira não serve pra nada mesmo, ela nem funciona. É só esse troço aí
que a gente tá vendo e que essa galera descolada acha que é objeto de decoração.
E sorte a nossa que eles pensam assim.
JOÃO
Eu não assinei nada!
ANNA
Você sabe que não é assim. Não é um imóvel, cara. É uma parte dos objetos da casa
que, gentilmente, o advogado da vovó separou porque ela pediu a ele que ficasse
com a gente. Vamos pensar direito nas coisas. E resolver, é preciso resolver rápido.
JOÃO
Anna, eu não quero ir embora. Eu sei que eu disse que queria, que não queria saber
de nada disso.
ANNA
Então?
JOÃO
Mas essa geladeira, essa geladeira é a única coisa que resta da gente, você não
entende? É a única coisa que sobrou do passado.
BERNARDO